Não é novidade que o direito à vida possui inigualável status dentro do nosso Estado de Direito. Apesar de termos uma Constituição Federal e diversos complexos normativos que nos asseguram garantias para fazer valer o cumprimento dos direitos postos, vemos na prática que há grande dificuldade de o Poder Público cumprir sua obrigação de fornecer aos cidadãos um serviço de saúde universal, integral e equilibrado. Os usuários de planos de assistência à saúde também experimentam das mesmas encruzilhadas, com injustas negativas de coberturas que infringem a boa-fé objetiva e o fim social do contrato.
Na maior parte das vezes, o cidadão clama a justiça já bastante enfermo, em uma divisão limítrofe entre a vida e a morte, ou em perigo imediato de agravamento de sua moléstia. Nesse cenário periclitante, entram em cena os instrumentos processuais que viabilizam que o estado-juiz avalie o pedido do jurisdicionado antes mesmo de o processo chegar ao final.
No CPC antigo, as exigências para se deferir uma tutela em caráter antecipado eram deveras mais duras, vez que o autor, a par da demonstração do periculum in mora, tinha que comprovar de modo irrefutável a plausibilidade de seu direito, por meio de prova inequívoca[1]. No caput do art. 300 do novo códex[2], o legislador flexibilizou essa regra, de modo a considerar muito mais a urgência (caracterizada por um contexto de perigo de dano irreparável ou de difícil reparação) que o fumus boni juris, representado apenas pela exigência de elementos que “evidenciam a probabilidade do direito”, e não mais elementos inequívocos.
Assim, o NCPC espancou de vez o debate que reinava outrora no que toca à exigência da prova inequívoca para autorizar a concessão da tutela antecipada satisfativa, fazendo valer, na expressão dos processualistas, a regra da gangorra, noutras palavras, “quanto maior o periculum demonstrado, menos fumus se exige para a concessão da tutela pretendida”.
A depender do valor do bem em disputa e da premência em resguardá-lo, a tutela de urgência deverá ser concedida ainda que a expectativa do direito não seja tão reluzente em um juízo de cognição sumária. Por isso, defendemos que este foi um dentre tantos outros avanços benéficos do NCPC, especialmente para os pacientes que sofrem na pele com o descaso e a irresponsabilidade dos gestores das saúdes pública e suplementar, que, com muita recorrência, não fornecem o serviço (cirurgia, exame, internação em UTI, home care) ou o produto (medicamento, órteses, próteses) que estão obrigados por lei ou contrato. O pior é que as negativas dos “gestores da saúde” são as mais estapafúrdias possíveis. Daí, na maioria das vezes, o paciente sem alternativas e com a saúde muito debilitada, necessita judicializar a questão às pressas, o que lhe impede de reunir na fase inicial do processo todos os documentos e provas capazes de comprovar com assertividade a responsabilidade civil dos entes acionados, fato tal que acaba dificultando o trabalho do julgador para mensurar o grau de probabilidade do fumus boni juris, cujo requisito fica, inevitavelmente, à sorte de uma carga altíssima de subjetividade do magistrado.
Decorre em diante que, patrimônios de estatura fundamental, a exemplo da vida e da saúde, não podem ficar à mercê das impressões pessoais e incertezas do julgador no que concerne à verdade dos fatos e fundamentos jurídicos sustentados pelo autor. Repito que o comprometimento do bem da vida é a condição mais importante a motivar a concessão da liminar. Neste ponto (urgência), as provas devem ser robustas e claras, sob pena de a tutela ser indeferida. Por esse motivo, indispensável que o paciente apresente na etapa inaugural os documentos capazes de convencer o juízo da existência do perigo que justifique o deferimento, como relatórios, atestados e declarações médicas asseverando a necessidade imediata do procedimento e/ou tratamento.
A modo de exemplo, paciente ajuíza ação de obrigação de fazer c/c pedido de tutela antecipada para que a operadora de plano de saúde autorize e custeie a cobertura das despesas médicas e hospitalares para tratamento oncológico, já que negada em sede administrativa sob a alegação de que o procedimento não está incluído no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar e de que o Hospital escolhido não é da rede credenciada. Na fase preliminar, embora o juízo ainda não esteja suficientemente convencido do dever contratual e legal da Operadora em arcar com a cobertura postulada, é de se deferir a tutela de urgência caso haja provas cabais de que o paciente- acaso não submetido tão logo ao procedimento prescrito pelo seu médico assistente e no hospital indicado- correrá palpável risco de falecer ou de agravar sua doença. Então, configurada a urgência, e havendo um mínimo convencimento do juiz de que a pretensão final será atendida, é de se conceder a medida provisória.
Outra novidade digna de expressão trazida pelo novo CPC é a de que o paciente doente, autor da ação, tem a opção de pedir apenas a antecipação da tutela satisfativa. Para os pacientes em situação de perigo, essa singela opção é de grande vantagem prática, por não demandar uma petição inicial sujeita aos rigores técnicos convencionais, insertos nos artigos 319 e seguintes. Por exemplo, a petição inicial não será indeferida caso o autor deixe de juntar alguns documentos comprobatórios de seu direito, como o contrato entabulado com a operadora, por exemplo. Todavia, deverá demonstrar a urgência, declarar expressamente sua opção (restringir à inicial ao pedido de tutela antecipada), e descrever os contornos do pedido principal.[3] Uma vez deferida a tutela, abre-se a possibilidade para aditá-la, a fim de que sejam cumpridas todas as exigências legais.
Mais um advento merecedor de comemoração: se o réu não interpuser recurso da decisão que deferiu a tutela antecipada em caráter antecedente, o processo extinguir-se-á, e a tutela ganhará estabilidade, a menos que no prazo de dois anos contados da ciência da decisão, a parte inconformada consiga rever, reformar ou invalidar a medida estabilizada. Com isso, teremos grandes chances de reduzir o tempo de duração do processo, gerando mais efetividade, economia e dignidade aos jurisdicionados e ao próprio estado investido em sua função jurisdicional.
O novo livro processual civil ainda nos brinda com a novidade introduzida na parte final da redação do art. 133, IV, que possibilita ao juízo – também nas obrigações de que tenham por objeto prestação pecuniária- impor medidas que assegurem o cumprimento da decisão judicial. Assim, se a entidade estatal ou a operadora de plano de saúde forem condenadas provisoriamente a custear em dinheiro o procedimento, o magistrado, em detectando risco de morte ou danos físicos irreparáveis ao paciente, poderá dissociar-se do modelo executivo típico das obrigações de pagar para introduzir mecanismos inerentes às obrigações de fazer, que forcem o réu a adimplir o comando judicial, como fixação de multa[4] e eventual responsabilização criminal por crime de desobediência, bem como lançar mão de instrumentos sub-rogatórios, como por exemplo, determinar o bloqueio de dinheiro da conta-corrente do devedor para satisfação da obrigação.
Em razão da cultura enraizada de desobediência que reina no Brasil (e nas demandas da saúde esse problema ainda é maior), penso que esse incremento é de grande valia para a função social do processo. São diários os casos de relutância dos gestores em respeitar a ordem judicial. Muitas vezes, a procrastinação é tanta que o autor não consegue usufruir da proteção do bem da vida buscado e conferido na decisão provisória, situação que acarreta a perda da finalidade do processo em razão da morte do paciente ou da consolidação de danos físicos irrecuperáveis.
Por fim, deste modesto arranjo exposto, podemos observar – com alegria e esperança- uma nítida constitucionalização do NCPC, tendo o legislador acrescentado mecanismos que creditam efetividade às decisões judiciais, as quais, em uma motivação maior, visam respeitar o ser humano em seus sentimentos, na fé depositada na justiça, e na sua legítima aspiração em FRUIR verdadeiramente o bem da vida perseguido.
Giovanna Trad, é advogada especialista em direito da saúde.
Membro do Comitê Executivo
Estadual do Fórum da Saúde do Conselho Nacional de Justiça.
[1] Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).
[2] Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
[3] Art. 303. Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo.
§ 1o Concedida a tutela antecipada a que se refere o caput deste artigo:
I – o autor deverá aditar a petição inicial, com a complementação de sua argumentação, a juntada de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final, em 15 (quinze) dias ou em outro prazo maior que o juiz fixar;
(…)
§ 5o O autor indicará na petição inicial, ainda, que pretende valer-se do benefício previsto no caput deste artigo.
[4] Outra novidade frutífera: A decisão que fixa a multa pelo descumprimento da decisão é passível de cumprimento provisório, sendo mais um comemorativo para forçar o devedor ao adimplemento da obrigação. (art. 537, parágrafo 3 do NCPC).