Temos uma sociedade mais questionadora e exigente. Temos um complexo de leis que regulam o exercício da medicina. Como consequência, os processos em face de médicos e Organizações de Saúde aumentaram exponencialmente nos últimos anos.
O Código de Ética Médica, em seu artigo 87, estabelece que é vedado ao médico “deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente”, e enfatiza no seu parágrafo 1º que “O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina”.
Ou seja, o médico que não preenche adequadamente o prontuário responde por falta ética.
O Conselho Federal de Medicina não legislou este mandamento à toa, mas com a certeza de que é um instrumento indispensável para diagnosticar, prevenir, curar e controlar doenças. Além disso, se destina a promover a melhoria da saúde de uma humanidade e de uma nação, já que os dados ali inseridos são de crucial relevância na promoção da pesquisa e da ciência, o que leva ao caminho da descoberta da cura de patologias. É útil ainda para formar estatísticas e possibilitar investigações epidemiológicas.
Ademais, o documento em comento guarda outras finalidades importantes, como por exemplo, propiciar uma boa gerência administrativa à organização, que terá subsídios para amparar eventual pedido de indenização à seguradora, efetuar cobranças, pedir reembolsos e realizar auditorias e sindicâncias a contento.
E é a ferramenta investida de maior valor probatório no âmbito judicial.
Em muitas situações, o juiz inverte o ônus da prova no processo. Isso significa dizer que as alegações do paciente são consideradas verdadeiras até que se prove o contrário, competindo ao réu (médico ou hospital) desconstituir essa presunção, sob pena de ser condenado.
Mas como o médico conseguirá provar que não teve culpa no insucesso do tratamento? Como provará que o mau resultado decorreu de fatores alheios ao seu comportamento (condições orgânicas desfavoráveis, avanço da doença, culpa do próprio paciente, etc.)?
Essas respostas são encontradas apenas e tão somente no PRONTUÁRIO. É nele que o juiz (com o auxílio do perito) vai buscar explicações para julgar o caso. O médico pode até ter executado o ato necessário para tratar a moléstia do paciente, mas se deixou de registrar, considera-se que a conduta médica não foi realizada, tendo como consequência uma condenação indenizatória, geralmente arbitrada em valores altíssimos. Além, é claro, de desestruturar fortemente a imagem do profissional.
O prontuário não deve ser preenchido de modo incompleto, ilegível, com rasuras ou espaços em branco, vez que coloca-se em prejuízo a questão legal, já que o documento mal elaborado poderá incutir no julgador uma sensação de desleixo, descaso, negligência e imprudência com seu paciente, podendo, desta forma, exercer pressão negativa no resultado do processo.
Dito isto, profissionais e Instituições de Saúde devem assumir uma postura condizente com os novos tempos, e se convencerem, de uma vez por todas, que o Prontuário do Paciente DECIDE o destino dos que estão nos bancos dos réus, tanto pela condenação quanto pela absolvição. Para isso, ilustrarei com alguns casos práticos e reais.
Em um trabalho de parto, os desembargadores entenderam que a acidose metabólica e a anóxia sofrida pelo bebê foi causada por falha médica. Sustentaram que diversas ocorrências durante o parto deixaram de ser anotadas no prontuário, presumindo-se que determinados procedimentos médicos necessários não foram realizados, reforçando a alegação de irregularidade no serviço prestado. Como não havia a anotação dos batimentos cardíacos no prontuário, concluíram que a monitorização não foi realizada. (Condenação: Danos morais em R$ 150.000,00, Pensão alimentícia mensal e honorários em 5% sobre o valor da condenação). Processo nº 0207637-80.1999.4.02.5102, TRF 2ª região.
Em um outro caso, graças ao PRONTUÁRIO (ou melhor, graças ao cuidado e zelo dos médicos com as anotações) a responsabilidade médica foi afastada porque a justiça ficou convencida que os profissionais envidaram todos os meios necessários para preservar a saúde e a vida da paciente, que infelizmente foi a óbito. Os juízes afirmaram que a morte decorreu de complicações inerentes ao quadro clínico da senhora, concluindo que os “dados constantes do prontuário não indicam qualquer tipo de desleixo médico em relação à paciente, que teve seus sinais vitais monitorados por todo o tempo em que esteve na unidade de emergência, inclusive , no que toca à pressão arterial, de hora em hora, sempre com a descrição detalhada do estado geral e do resultado das tentativas de tratamento”. (TRF 2ª R.; AC 0008110-67.2010.4.02.5101; RJ; Quinta Turma Especializada; Rel. Des. Fed. Marcus Abraham; Julg. 17/09/2013; DEJF 08/10/2013; Pág. 340).
Portanto, o médico deve transpor para o prontuário tudo o que foi empreendido para salvar, curar ou amenizar o sofrimento do paciente, sempre seguindo e ANOTANDO os protocolos exigidos pela especialidade que atua.
Anotar as ocorrências capazes de comprometer a efetividade do tratamento é medida impositiva para afastar a culpa médica. Exemplos: falta de vaga na UTI, falta de medicamentos, ausência de equipamento para feitura de determinado exame, falta de médico especialista, descumprimento do paciente às orientações médicas, abandono do tratamento, hábitos do paciente e comorbidades, descumprimento da dieta, doenças associadas, hábitos, costumes, uso de outras medicações, cirurgias anteriores, etc.
Registrar que fez encaminhamento ao médico especialista (existem muitas condenações sob a alegação de negligência médica ao não encaminhar para o profissional especialista), anotar que enviou o relatório de transferência (com as informações completas do quadro do paciente), orientações de alta, orientações de retorno, etc.
É claro que existem inúmeras outras situações -na prática médica e hospitalar- que não podem passar desapercebidas de anotações.
Mas nosso intuito neste artigo é de chamar a atenção e mostrar a importância de quão importante é o registro no prontuário como instrumento hábil a evitar condenações judiciais e éticas injustas.
No atual momento que vivemos, não basta ser bom, não basta fazer. Tem que registrar, também!
Giovanna Trad, advogada especialista em Direito Médico, membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde do Conselho Federal da OAB. Presidente da Comissão de Biodireito da OAB/MS.