Artigo publicado no site Migalhas
Ainda não temos nenhum tratamento farmacológico específico para a covid-19. Por isso, pesquisadores e entidades governamentais do mundo inteiro estão em constante movimento para a descoberta de uma vacina ou algum medicamento capaz de curar a doença. Estamos vivendo uma extraordinária corrida contra o tempo.
Eis que então surgem no cenário mundial duas vedetes: A cloroquina e a Hidroxicloroquina, drogas já aprovadas para o tratamento da malária, lúpus e artrite reumatoide. No entanto, não possuem registro e indicação na bula para tratamento da covid-19 (uso off label). Logo, não há pesquisas concluídas sobre os efeitos dessas drogas nas pessoas com doença infecciosa grave. A única certeza que temos, até o presente momento, são os graves eventos adversos que o seu uso traz, como distúrbios cardíacos, oculares, hepáticos, psiquiátricos, sistema linfático, dentre outros.
Apesar dessa instável conjuntura, certo é que existe uma massiva publicidade para que a população se socorra a esses remédios, como se fossem o elixir contra o inimigo invisível, cuja promessa levou inúmeras pessoas às farmácias para adquiri-los, resultando no esgotamento dos estoques, e forçando a Anvisa a inseri-los na lista dos remédios controlados.
Essa pandemia de distorcidas informações acaba seduzindo a população. Por isso, médicos são pressionados por pacientes e familiares a prescrever a cloroquina/hidroxicloroquina mesmo nos casos em que seu uso é dispensável ou quando sequer há diagnóstico confirmado.
Assim, coagidos, muitos profissionais (até pelo temor de serem processados) acabam caindo no erro de prescrever a droga sem indicação e atendimento aos protocolos, e não dimensionam que essa escolha, sim, pode lhe causar sérias implicações legais e éticas.
Então, como tomar a decisão correta? Em quais hipóteses, e de que forma, prescrever esses fármacos com segurança jurídica?
A primeira recomendação é que o médico se atente aos comandos do Ministério da Saúde, da ANVISA e do Conselho Federal de Medicina.
Porém, adianta-se que esses organismos possuem sutis divergências em alguns aspectos, motivo por que faremos uma interpretação lógico-sistemática de todas essas normativas, para que tenhamos coerência em nossa conclusão.
Pois bem. O Ministério da Saúde legitimou o emprego da cloroquina/hidroxicloroquina como terapia adjuvante da Covid-19 nas hipóteses de quadro grave da enfermidade, e desde que o paciente esteja hospitalizado, sem prejuízo da possibilidade da inserção de outras medidas de suporte necessárias, como antibioticoterapia, corticosteroides, antivirais, assistência ventilatória, medicações para tratamento dos sintomas, e outros.1 Conquanto os documentos emitidos pela Pasta limitem o uso aos casos críticos, o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, declarou que pode ser utilizado também aos pacientes em estágio inicial, mas reconhece que ainda é cedo para formalizar essa recomendação.2 O fato é que o médico deve alicerçar o seu comportamento segundo o prescrito nas normas, e não nos aconselhamentos informais do Ministro da Saúde.
Já o Conselho Federal de Medicina, assevera que “embora novos protocolos e vacinas estejam em fase de análise, até o momento não há estudos conclusivos que comprovem a eficácia e segurança do uso de medicamentos que contém cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento da covid-193”.
Por último, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) não recomenda o uso indiscriminado desses medicamentos sem a confirmação de que realmente funciona, pois “os estudos conduzidos até o momento têm um número de pacientes muito reduzido e ainda é arriscado afirmar que vai funcionar no tratamento da covid-19. Mais dados precisam ser coletados, de maneira adequada, para haver certeza de que vai funcionar”.4
Com efeito, note-se que todos os órgãos acima apontados, comungam do entendimento de que não há nenhuma pesquisa finalizada que ateste a eficácia e segurança das medicações, e ainda convergem que não é permitida a prescrição de hidroxicloroquina/cloroquina de modo indiscriminado, o que quer dizer que qualquer conduta irrefletida e desmedida pode resultar na responsabilização do médico nas esferas civil, penal e administrativa.
Para evitar ou minimizar esses riscos, recomendamos que o profissional, na hipótese de diagnóstico de infecção por SARS-CoV-2, adote as seguintes medidas preventivas:
1. Avaliação da necessidade e utilidade da prescrição. Algumas indagações devem ser feitas: Qual a gravidade do quadro do paciente? Há alternativas menos arriscadas que ainda não foram empregadas? Realmente essa droga será decisiva para recuperar a saúde ou a vida do paciente? Essa medicação trará alguma utilidade prática? Existe contraindicação?
Todas essas considerações são de extremo relevo para a segura e mais ajustada tomada de decisão médica5, conformada aos princípios bióticos da beneficência e da não maleficência, a teor do que prevê o Código de Ética Médica e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, da UNESCO.
Portanto, escolhas açodadas ou prenhe de descuido podem caracterizar imprudência ou negligência (e, em havendo dano, acarreta a responsabilidade nas searas penal, cível e administrativa), além de configurar infração ética por descumprimento a outros postulados deontológicas, como “complicar a terapêutica”6 e/ou “praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País”.7
2. Limitar às prescrições aos pacientes hospitalizados e críticos, e ainda assim com cautela, em adstrição aos pormenores supra mencionados, e desde que não haja contraindicação.
3. Não prescrever para uso profilático ou doméstico, mesmo que o paciente assim deseje.
4. Empreender a checagem do eletrocardiograma (ECG) do paciente antes do início da terapia, segundo prevê o Ministério da Saúde8. Na presença de insuficiência renal ou insuficiência hepática graves, reduzir a dose de cloroquina para 50%. Tais ações evitam que o profissional incorra em conduta culposa, a depender da casuística.
5. Obtenção do consentimento livre e esclarecido do paciente ou do seu representante legal9, que somente terá validade se o profissional explicar, de forma clara e precisa, todos os aspectos informacionais de caráter decisivo para a escolha livre do assistido, tais como a indicação da hidroxicloroquina (justifique o porquê é necessária essa intervenção excepcional), seus possíveis benefícios (minimizar complicações respiratórias e evitar mortalidade, p.ex.), alternativas terapêuticas, bem como os riscos do fármaco, tanto os previstos na literatura quanto os relacionados às condições de saúde individuais do paciente (hipertenso, diabético, cardíaco).
6. Após prestar as informações destacadas no parágrafo precedente, reduzi-las a termo, pelo instrumento denominado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, com a coleta da assinatura do paciente ou de seu representante legal. O documento em testilha é de fulcral relevância, a uma porque estamos a falar de medicação off label10, a duas em virtude dos pesados eventos adversos imanentes a essas drogas (e o documento escrito ajuda o paciente a elaborar melhor esses riscos e a sua escolha), a três porque o ônus da prova da prestação da informação, em regra, será imputada ao profissional da medicina, seja pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor, ou em virtude da Teoria da Distribuição Dinâmica da Carga Probatória, prevista no Código de Processo Civil.
7. Registrar todos esses cuidados no prontuário, porquanto, além de se tratar de ato obrigatório11, promove uma assistência adequada, contribui nos estudos epidemiológicos, e é de suma relevância probatória em processos e questionamentos que o médico possa vir a sofrer. Desta forma, dentre outras anotações, imperioso que o médico registre (e fundamente) qual foi a opção terapêutica escolhida em conjunto com seu paciente. Se, por qualquer motivo, o tratamento adequado restar prejudicado por interferências externas, como a falta da hidroxicloroquina, p.ex, de rigor que o profissional documente esse acontecimento.
8. Fomentar a recíproca confiança na relação médico-paciente, para otimizar o tratamento e evitar interpretações equivocadas sobre possíveis resultados desfavoráveis, coibindo a judicialização.
Analisando a questão noutra perspectiva, deve o médico relatar ao paciente que a hidroxicloroquina, conquanto ainda não aprovada para o tratamento do novo coronavírus é uma das alternativas adjuvantes para indivíduos internados em estado grave, segundo decreta o Ministério da Saúde. Isso para que o facultativo cumpra com o dever de informar previsto no seu Código de Conduta Profissional (consistente em assegurar autodeterminação do paciente)12, e até como forma de obstar ou reduzir a probabilidade de prejuízos em demandas de toda ordem.
Todavia, embora o profissional deva oportunizar ao paciente todos os recursos disponíveis, o mesmo não é obrigado a prescrever aludidas drogas caso tal ato viole os ditames de sua consciência.13 Por isso, se o paciente ou familiar insistir no uso desta medicação, o médico, em não concordando, poderá renunciar ao atendimento, mas, neste caso, consoante a letra do art. 36, § 1°, do CEM, deverá comunicar “previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que o suceder”.
Em conclusão, há vários estudos clínicos em curso que versam sobre a aplicação da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da SARS-CoV-2, e acredito que brevemente teremos boas novas. Mas, por ora, o estado da arte é de que ainda não há evidências cientificas suficientes que validem a sua eficácia e segurança em seres humanos acometidos por esse novo vírus, pelo contrário, a consagrada e crível British Medical Journal (BMJ) enfatizou no editorial do dia 08/04 que “O uso dessas drogas é prematuro e potencialmente prejudicial”14.
Nesse panorama duvidoso e arriscado, propício a dilemas e conflitos, recrudescem os deveres médicos de advertência e rígida cautela nas prescrições, que devem, inclusive, perpassar os cuidados prescritos pelo Ministério da Saúde.15 Para tanto, recomendamos que o profissional faça o planejamento jurídico e ético da sua atuação nesta pandemia, voltado à sua própria salvaguarda (física, psíquica e patrimonial), e daqueles que são assistidos.
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1 Na Nota Informativa 6/20-DAF/SCTIE/MS, o Ministério da Saúde assinala que “disponibilizará para uso, em casos confirmados e a critério médico, o medicamento cloroquina como terapia adjuvante no tratamento de formas graves, em pacientes hospitalizados, sem que outras medidas de suporte sejam preteridas em seu favor”. Clique aqui
Vide também o material “Diretrizes para Diagnóstico e Tratamento da Covid-19” produzido pelo Ministério da Saúde. Clique aqui
Em 25.03.20 o Ministério da Saúde apenas o liberou para pacientes internados com quadros graves. Em 03.04.20, o órgão ampliou a indicação para casos moderados.
5 O Conselho Nacional de Justiça, encomendou um Parecer Técnico ao Hospital Sírio Libanês sobre o uso da Hidroxicloroquina. A instituição não recomenda o seu uso de rotina até que os resultados dos estudos em andamento possam avaliar seus efeitos de modo apropriado.
Para tanto, fundamentou-se que “a justificativa para uso de medicamentos para casos de covid-19, assim como para qualquer outra doença, deve ser pautada na existência de benefícios clínicos (redução de mortalidade, e complicações respiratórias etc.) observados por meio de bons estudos clínicos, preferencialmente ensaios clínicos randomizados e duplo-cegos. O uso de um medicamento não deveria ser justificado unicamente por seus potenciais mecanismos de ação observados em estudos experimentais/ pré-clínicos. Ignorar estes preceitos, certamente aumenta a incerteza na tomada de decisão – o que significa exatamente o oposto do que as pesquisas clínicas têm procurado seguir, de modo mais rigoroso, ao longo dos últimos 25 anos.
Fundamenta que “frente ao cenário alarmante em que estamos vivendo, é que se torna imprescindível que as decisões sejam informadas pelas melhores evidências disponíveis, de modo que as ações de hoje tenham maior probabilidade de trazer benefícios do que riscos à população. Neste sentido, qualquer recomendação sobre o uso de medicamentos para o tratamento da infecção por covid-19 deve ser pautada em estudos com qualidade metodológica suficiente para minimizar a incerteza de seus resultados.”
6 Assevera o art. 35, do CEM, que é vedado ao médico “Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos”
7 O médico poderá ser condenado também por complicar a terapêutica ao prescrever a droga em pacientes com sintomas leves, pois é vedado ao médico “Exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos”. (CEM, art. 35).
8 Realizar ECG antes do início da droga e acompanhar durante toda a internação o intervalo QT, pois a cloroquina pode aumentar esse intervalo, especialmente se utilizada com outras drogas que prolongam o QT. A suspensão se dará por avaliação clínica individualizada. Clique aqui
9 É vedado ao médico “Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. (CEM, art. 34).
10 Explica a ANVISA que “Quando o medicamento é empregado nas situações descritas acima está caracterizado o uso off label do medicamento, ou seja, o uso não aprovado, que não consta da bula. O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. Há casos mesmo em que esta indicação nunca será aprovada por uma agência reguladora, como em doenças raras cujo tratamento medicamentoso só é respaldado por séries de casos. Tais indicações possivelmente nunca constarão da bula do medicamento porque jamais serão estudadas por ensaios clínicos.” Clique aqui
11 Constitui violação ética “Deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente”. CEM, art. 89, caput.
12 É vedado ao médico, Art. 24 Deixa de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.
13 O Código de Ética médica, no seu Capítulo II, IX, prescreve que é direito do médico, “IX –Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”.
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15 Nessa direção, confira-se o parecer da A Sociedade Brasileira de Infectologia, “que considera o uso da hidroxicloroquina para tratamento da covid-19 como uma “terapia de salvamento experimental”. Seu uso deve ser individualizado e avaliado pelo médico prescritor, preferencialmente com a participação de um infectologista, avaliando seus possíveis efeitos colaterais e eventuais benefícios. Entre os principais efeitos adversos, destacam-se: discrasia sanguínea, distúrbios gastrintestinais (náuseas, vômitos, diarreia), fraqueza muscular, labilidade emocional, erupções cutâneas, cefaleia, turvação visual, descoloração do cabelo ou alopecia e tontura. Recomendamos que, se usado, idealmente o seja na forma de estudo clínico aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) ou, para resguardar o médico prescritor, que pelo menos seu uso seja aprovado pelo Comitê de Ética do hospital, com termo de consentimento do paciente ou da família (paciente intubado). Como é uma medicação experimental para esta indicação (covid-19), é importante que seu eventual uso seja dentro de um protocolo da instituição e que os resultados, tanto se forem positivos, como negativos, sejam relatados. A SBI acha compreensível seu uso no paciente crítico, já que não há tratamento aprovado para covid-19, mas manifesta sua preocupação que um tratamento experimental possa trazer mais danos do que benefícios para o paciente.” Clique aqui
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*Giovanna Trad é advogada especialista em Direito Médico e da Saúde. Membro da Comissão de Direito Médico do CFOAB e presidente da Comissão de Biodireito da OAB/MS.